Família

Decisão

Decidir abandonar a química é uma importante etapa do processo de transição capilar. Esse processo, longe de ser somente um ato estético, tem tudo a ver com a construção da nossa identidade.

Muitas vezes, a gente nem sabe explicar porque alisou os cabelos um dia na vida. Às vezes é só porque queremos nos sentir mais bonitas, elevar a nossa autoestima. Ou até porque alguém muito próximo sugeriu que seria melhor. Porém, quando nos percebemos distantes daquilo que realmente somos, podemos entrar em crise.

Precisamos ser realistas e admitir que deixar as químicas para o cabelo de lado não é algo assim tão simples, diversas áreas da nossa vida podem ser concretamente afetadas, incluindo as relações familiares.

 

Transição capilar: relações familiares

Nós aqui sabemos que cada família tem a sua forma particular de existir e que algumas pessoas encontram apoio e outras infelizmente, não.

Diversas trajetórias familiares trazem uma bagagem de desestruturação sobre a qual muitas vezes os seus membros não têm consciência. Essas desestruturações podem ter relação com fatores econômicos, sociais, culturais e até mesmo emocionais, entre outros.

Há casos de famílias em que existe entre as mulheres, até mesmo entre os homens, uma tradição de alisar os cabelos. Essas pessoas normalmente acreditam que o alisamento se trata de uma expressão de cuidado, de asseio e de vaidade. Porém, na realidade, não é bem isso.

Não nos cabe julgar a ninguém. Leva mais tempo para algumas pessoas que para outras perceber que determinadas coisas precisam ser mudadas nesse mundo em que vivemos. O que nós precisamos mesmo é criar o entendimento de que o cabelo liso é previsto como um padrão de beleza “necessário” para a aceitação social. Hoje, sabemos que há outras belezas possíveis, mas essa ideia de um padrão único ainda não foi superada como um todo.

Quando algumas pessoas se percebem descontentes com esse padrão, nem sempre encontram a compreensão de que é possível ser bonita fora dele. Que o cabelo crespo e o cacheado também são expressões particulares de beleza. Nesse caso, já deve entrar em cena um fator essencial para a todo o processo de transição.

 

Transição capilar: apoio da família

Estamos falando da paciência.

Sim, você precisa ter paciência consigo mesma e com aqueles que te cercam, por mais dura que seja a convivência com a crítica e com a falta de compreensão.

Sabemos que se trata de um momento difícil que já te exige muitas coisas, mas é importante saber que essa é uma delas.

Se você não for paciente com aqueles que te cercam, poderá sucumbir à ideia de que o melhor é alisar mesmo, mas ninguém te garante que isso te fará satisfeita e feliz.
É preciso então resistir. Perceba que não estamos dizendo que o certo é brigar com todo mundo por aquilo que você quer, mas talvez deixar claro que não há alguém que possa decidir sobre o seu corpo melhor que você mesma.

Mesmo que esse alguém seja muito próximo, como pai, mãe, irmãos e irmãs, tios ou tias, primos e primas.

O desejo dos outros de que os padrões sejam atendidos não podem, de jeito nenhum, te impedir de tomar essa decisão, pois quem sofrerá com a renúncia à vontade de realmente se mostrar ao mundo tal como é, não será outra pessoa senão você mesma.

Conversamos com algumas pessoas sobre quais foram os impactos que a transição trouxe para as suas vidas, também para saber se contaram com o apoio familiar em seus processos.

A atriz Thammy F. contou para gente que não teve nem tem ainda apoio em casa.

 

“Na verdade não tive ou tenho apoio, pelo menos não dos familiares, eu decidi e fiz. Apenas uma amiga me encorajou a princípio”.

 

Por ser filhas de pais separados e fruto de uma relação inter-racial, ela sempre conviveu com pessoas de pele branca e cabelos de textura mais lisa. Infelizmente, ao longo de sua trajetória, sofreu diversas formas naturalizadas de preconceito:

Meu cabelo não pode armar, ou eu prender que me mandam ir arrumar, pentear, que está ridículo. Dizem que agora sim sou ‘neguinha’ por conta do meu ‘cabelo duro’.

A pesquisadora e escritora Ana A. também nos contou que já sofreu preconceito por parte de familiares:

 

“Uma vez fomos passar o final de semana na praia com os familiares do meu marido, que na época era apenas namorado. Dormimos na sala e quando acordei, com os cabelos recém cortados para retirar a química, e bem armados, uma prima dele me disse que eu precisava prender urgentemente o cabelo porque estava horroroso. Em outra ocasião, já casados, recebemos a mãe e uma outra prima dele em casa, quando fui abrir o portão, elas simplesmente, antes de me cumprimentar, começaram a rir do meu cabelo que tinha partes com muito frizz porque estava secando. Senti um nó na garganta de vontade de chorar. Duvido que elas tenham noção do quanto me magoaram naquele dia, do quanto chorei quando foram embora, do quanto me doeu por dias e dias seguidos, porque o preconceito é tão naturalizado que as pessoas sequer percebem que estão maltratando as outras com esses tipos de comentário”.

 

Mas a Ana aprendeu a lidar com isso de uma forma muito interessante, guardem bem o que ela diz:

 

“Eu precisei aprender que o problema é muito maior. Que não é um problema individual, mas coletivo. Que, às vezes, aqueles familiares que me magoaram são tão ou mais reféns dos padrões de beleza quanto eu era e também precisam ser estimulados a se libertar disso. Que também preciso ter empatia por eles, porque se não tiver, se reagir com cinco pedras na mão, dificilmente conseguirei convencê-los que tenho o direito de ser respeitada”.